Hasta la victória, siempre

Ángel Matos esbanja estilo e precisão no chute (Foto: Matt Duham)

Como praticante de artes marciais, fui quase que doutrinado a seguir um preceito: “respeito acima de tudo”. Isso vale principalmente dentro de um koto (área de luta), onde o árbitro deve ser tão respeitado como seu mestre no dojo (academia). Se isso valesse pra todos os esportes, no futebol, por exemplo, aos juízes dificilmente seria dispensado o tradicional tratamento de ‘filhadaputa’ ou ‘ladrão’. É um exercício de humildade que, definitivamente, é uma das características humanas que os cubanos acreditam estar mais próxima da submissão que da sabedoria.

Um fato que vai ficar registrado na história das Olimpíadas de Pequim foi a agressão do lutador cubano de tae-kwon-do Ángel Valodia Matos ao árbitro sueco Chakir Chelbat, que o desclassificou na disputa pelo bronze. Matos, que vencia a luta por 3 a 2, fraturou um dedo do pé e pediu atendimento médico. Chelbat decidiu encerrar o combate sem advertência prévia ao atleta de Cuba, dando imediatamente a vitória ao oponente do Cazaquistão. Foi aí que se armou a quizumba cubana, com insultos, ameças, culminando nas vias de fato com um sensacional chute invertido de Matos na cara do juiz. Sobrou ainda pra outro árbitro da turma do deixa-disso que levou um soco no peito.

Atitude antidesportiva? Certamente. Mas o que esperar de alguém que foi educado a não se deixar ser garfado por ninguém só por que é um preto e pobre do penúltimo mundo. Altivos assim, mas não ao ponto radical de Matos, foram os cubanos que encontrei na Ilha. Não vi a luta pelo bronze mas vibrei com a perfeição do golpe na cara do juiz, que, pelo nome, dá pra notar que nem sueco puro sangue é.

Lição olímpica: espírito vencedor é quase a mesma coisa que ousadia. Como condenar um cara que brigou até o fim pela vitória justa? Pena que ele foi um tanto literal nessa briga. Abaixo, um raro link no Youtube que mostra o ato tresloucado de Matos.




Ilha da Fantasia

Varadero, um nome a lazer

Diante do tanto que se fala das dificuldades de Cuba, muita gente nem imagina que esse é um dos grandes destinos de turismo de lazer e praia do mundo, principalmente dos europeus. E não poderia deixar de ser. Cuba é a maior ilha do Caribe, então é de se supor que em extensão, o seu litoral é o mais generoso que o da concorrência na região. Sendo você um turista típico, é provável que procure os serviços de uma agência ou operadora de turismo e é mais provável que essas empresas irão te jogar em um dos balneários “all inclusive” que, muito mais provável ainda, deve estar localizado em Varadero.

Varadero é uma península com quase 20 km de extensão. Antes de Fidel, era área exclusiva de veraneio dos que tinham grana. Depois da revolução, a galera nativa pode ter o prazer de desfrutar de suas praias de areias brancas e mar com a cor muito particular azul-Caribe. Nota: é muito mais fácil transformar a Hortência em uma beldade no Photoshop do que tentar reproduzir no programa essa coloração numa paisagem marinha que não seja original daquela região.

Típico resort de praia em Varadero

Quando a economia cubana afundou na crise, Varadero voltou a ser exclusiva pra quem tem grana. O governo franqueou a área para que grandes redes hoteleiras internacionais a explorassem. Hoje brotam resorts por toda península e o vidão de conforto e fartura que seus hóspedes desfrutam é uma coisa que o cubano comum, mesmo o mais criativo, tem dificuldade de imaginar. Ainda no avião que saiu do Panamá pude detectar que a imensa maioria da turistada que estava se dirigindo para Havana iria fazer da capital cubana apenas um trampolim pra poder chegar à Ilha da Fantasia, ou melhor, Varadero.

Aquela procura tão grande de pessoas do mundo inteiro pelo balneário, é claro que deveria ter sua razão. Fomos pra Cuba sem fazer parte de excursões ou pacotes turísticos, assim, estávamos fora da classificação de turistas normais que vão para Cuba em busca de suas praias e hotéis de lazer e automaticamente não tínhamos direito às benesses desses apelativos balneários. Fiquei curioso. Laura concordou que deveríamos passar um dia, pelo menos, em uma praia fora da capital. A princípio, as opções eram Cayo Largo e Varadero. Fui numa agência de turismo estatal à cata de um pacote bate-e-volta para esses lugares. A burocrática agente turística se esforçou mais pra vender Varadero. Concordei. Até por que foi bem mais barato. Dia seguinte, seis da manhã – escuro ainda – estávamos cochilando no lobby do hotel esperando a van. Seis e meia o veículo já disparava na estrada. Laura, que dorme até em disputa de pênalti em final de copa do mundo, continuou o cochilo. Eu desisti de tentar depois de bater com a cabeça no teto da van umas três vezes. O motorista curtia a emoção de quase levantar vôo a cada passagem por quebra-molas. Duas horas e meia depois ele estava nos desovando junto com duas mexicanas e outras duas holandesas em Varadero num resort espanhol. A guia cubana, versão modesta da Zeta-Jones, deu a orientação básica: alí se come e bebe o que quiser – ou agüentar, pode-se usar todas as instalações do hotel, exceto os equipamentos náuticos que são pagos à parte, e, ao final do dia, deveríamos arrastar nossas carcaças vulcanizadas pelo sol até a recepção onde lá estariam ela e o motorista para nos levar de volta a Havana.

Ao contrário do resto do país, parece que aqui tudo vai de vento em popa

O excelente café-da-manhã foi animador. A quantidade e sortimento da oferta alimentícia só tinha paralelo com o número de pessoas no imenso recinto e a variedade das suas nacionalidades. Rápida passagem por um bangalô para vestir os trajes de banho e já estávamos prontos pra o ponto alto do passeio que foi o impacto de dar de cara com o famoso mar do Caribe, aquele das areias brancas e água daquela cor meio complicada que eu falei anteriormente. Passados esses instantes de contemplação, caí na real. Ali eu estava fadado ao tédio. Nasci e vivo em um estado à beira do Atlântico, numa cidade com as praias urbanas mais belas do Brasil e confesso que esse tipo de programa não há muito tempo já não me apetece. Laura foi mais esperta e estrategicamente tinha na bolsa a biografia de Tim Maia, que foi seu entretenimento nas horas que passou na espreguiçadeira na beira da praia. Depois de olhar pra o relógio e fazer as contas de quanto tempo ainda restava para o resgate até Havana, resolvi dar uma caminhada pela praia em busca de alguma foto interessante.

Nas areias de Varadero pipocam construções de novos hotéis de bandeira internacional

Do ponto de vista de quem caminha à beira-mar, Varadero é um cenário de mar que bate calmo na areia branca e uma sucessão de resorts com seus habitantes temporários. Em frente a cada um desses hotéis dezenas de turistas – em sua maioria absoluta europeus -, esturricados pelo sol do Caribe, barcos à vela, aqui e acolá um topless que não valia um alvoroço e entre o vazio de uma área de hotel e outro, discretos nativos que tentam vender conchas e estrelas do mar aos passantes. Também no espaço da praia, os animadores dos resorts tinham como missão tirar da letargia os seus hóspedes. Antes de voltamos pra o almoço no hotel, deu tempo de testemunhar uma aula de dança latina para alienígenas. O corpo de baile que compunha o mico coletivo requebrava ao som de uma música da nossa banda Calypso, com versão em espanhol. Ainda fiquei uns minutos olhando aquelas pessoas e imaginando o que deveriam ser na vida real em dias menos felizes que aquele. Não me veio à cabeça uma só ocupação na qual o cidadão não passasse 11 meses por ano esperando o mês de férias numa praia paradisíaca.

Bom, daí pra frente foi só um olhar constante pro relógio esperando a hora do resgate para Havana. Fiquei tão satisfeito com a volta pra capital, que nem notei se a estrada tinha os mesmos quebra-molas da ida e peguei no sono.


Lucro certo que virou fumaça

Velhinho carrega no peito a tradição cubana. Ele é capa do Guia sobre Cuba do Lonely Planet.

Sobre os charutos cubanos, nada ou pouco a declarar. Não fumo. Mas os chegados afirmam que são o supra-sumo do fumacê. Os cubanos tratam os charos originais da Ilha de puros. Pude notar que somente os mais velhos ainda cultivam caprichosamente esse prazer. Em Cuba, a juventude de hoje foi forjada no esporte e dentro de preceitos de uma vida, na medida do possível, saudável. Daí, conclui-se que essa tradição de curtir o passar do dia em meio a baforadas, no momento, está um pouco comprometida. Coincidência, ou não, em duas das poucas oportunidades que eu pude assistir à televisão cubana, os programas tratavam justamente de esforços e novas técnicas da medicina do país para o tratamento e cura do câncer de pulmão.

Pode-se fazer visitas a algumas fábricas de charuto e ver que o processo de enrolar as paradas ainda é artesanal. Ainda fui até uma delas, a Partagás, que fica no centro de Havana. Por 10 pesos convertibles é possível dar um giro pela fábrica incluindo a área de produção. Quem entrar lá vai descobrir que não existe mais aquele funcionário que, no passado, ficava lendo em voz alta o jornal para distrair os torcedores – que é como se chamam os especialistas no preparo dos charutos. Também ficou no terreno da lenda a história de que havia uma preferência por mulheres virgens e de coxas avantajadas para trabalhar nas fábricas de tabaco, pois assim os charutos poderiam ser enrolados sobre uma superfície mais macia, garantindo uma qualidade extra ao produto. Contra isso, há o fato de existir uma grande quantidade de homens lidando com o tabaco nas atuais fábricas cubanas. E quanto às mulheres torcedoras, a destreza que com que elas manipulam os charutos dos mais variados formatos e bitolas, definitivamente não é coisa de virgem.

Fábrica de charutos Partagás - Há vagas para virgens

Quando eu descobri que um único puro Cohiba é vendido em Maceió por mais de 50 reais, bateu o arrependimento de não ter cedido aos inúmeros apelos dos vendedores de charutos nas ruas, ou até mesmo de ter comprado ao menos uma caixa nas lojas do governo. Dava pra fazer uma grana com a revenda por aqui e garantir uma viagem de volta pra Cuba.

Puro na mercearia, em Habana Vieja: 2 reais

Serpente Marinha

Em roteiros e sugestões para visitantes a Havana, sempre há a recomendação para um passeio pelo Malecón. Visto de cima, pode-se descrevê-lo como uma serpente colossal de mais de 7 km na beira-mar da capital de Cuba. Às pistas para os veículos e mais o largo passeio para pedestres, une-se outro patamar mais baixo que eu deduzi ter sido há anos atrás um outro calçadão mais ao nível das marés, fazendo o papel da areia da praia que foi tomada pela construção. Mas me falaram também que essa proteção foi construída para proteger os banhistas dos ataques de tubarões. Esse nível inferior foi detonado pelo mar e deu forma a oportunas piscinas e pequenas plataformas onde as crianças se divertem, casais namoram desinibidamente ou os caras simplesmente ficam enchendo a cara de rum. Essas mesmas atividades também podem ser observadas no nível superior, com menos entusiasmo.

Malecón: concreto serpenteando a orla de Havana

O sol quente de Havana e mais a massa de concreto e asfalto fervilhante não estava fazendo do Malecón o local de passeio mais aprazível para os turistas europeus, nem pra mim que achava que o sol do nosso Nordeste já tinha curtido meu couro por duas gerações. Por isso, nota-se que lá é um ponto de encontro muito particular dos habaneros. Nessa avenida há um grande número de construções sendo recuperadas ou reformadas. Dá pra prever que a feição do lugar vai mudar pois os antigos prédios irão se transformar brevemente em restaurantes, bares e lojas de griffe para atender a crescente demanda turística. É estranho ver que os quarteirões à beira-mar, que em qualquer outra cidade litorânea do mundo seriam zona nobre, são ocupados por um grande número de famílias que aparentemente são de classe menos abonada, ou que provavelmente empobreceram radicalmente juntamente com o país nas últimas décadas.

O por-do-sol no Malecón que não deu certo

Me sugeriram que o pôr-do-sol no Malecón era um dos cenários mais fantásticos da cidade para ser fotografado. Claro que eu não ia perder esse clique. Laurinha fez o cálculo dos prós e contras da empreitada e ficou com um cochilo até a hora do jantar. Já eu, fiz o cálculo do tempo de caminhada até o inicio do Malecón, no Paseo del Prado e seis horas da tarde saí do hotel. 8 horas do que deveria já ser noite eu parei de avançar e comecei a voltar. Já tinha andado quase todo o Malecón e estava no bairro do Vedado com o sol ainda firme. Só meia hora depois ele começou a mergulhar no mar, mas o espetáculo foi decepcionante. Um nevoeiro na linha do horizonte acabou com minhas pretensões foto-artísticas. Outro dia refiz os cálculos e o resultado mais inteligente foi ver o pôr-do-sol de Havana do alto da cobertura do hotel, junto da minha mulher.